A COMISSÃO NACIONAL DE MORAL E CIVISMO E A
EDUCAÇÃO BRASILEIRA
Amanda Marques de Carvalho Gondim
A Comissão Nacional de
Moral e Civismo (CNMC) surgiu no contexto do regime militar brasileiro e
perdurou mesmo depois de findo o governo militar e a volta da democracia.
Instituída pelo Decreto nº 68.065, de 14 de janeiro de 1971, possuía entre suas
atribuições promover o conhecimento do Decreto-lei nº 869, de 12 de setembro de
1969. Na alínea a, que dispunha das finalidades da Educação Moral e Cívica
(EMC), está a proposta de uma relação intrínseca entre o princípio democrático
e o espírito religioso, pois afirma-se que o segundo é a base do primeiro.
A disciplina de Moral
e Civismo e suas correlatas, Organização Social e Política do Brasil (OSPB) e
Estudos dos Problemas Brasileiros (EPB) foram idealizadas com esse objetivo.
Embora a EMC tenha existido em outros momentos da história da educação
brasileira, foi no final dos anos 1960 e no decorrer dos anos 1970 e 1980 que
passou a ter uma estrutura fomentadora das ideias do governo militar. A CNMC
pregava a dualidade da democracia espiritualista e do comunismo ateu
(FILGUEIRAS, 2006, p. 87). Essa ideia encontrava espaço na Doutrina de
Segurança Nacional (DSN) pregada pelos militares e uma instituição educacional
foi criada especialmente para atender a essa demanda.
O período compreendido
entre os anos de 1969 e 1993 foi marcado por grandes mudanças na ordem social e
política do Brasil. A educação naquele momento foi palco para a
institucionalização de um projeto de identidade nacional voltado aos interesses
de um grupo que afirmava defender a democracia. Foi criada uma disciplina com
base nesse princípio, a Educação Moral e Cívica, instituída pelo decreto
presidencial nº 869, de 12 de setembro de 1969. A Comissão Nacional de Moral e
Civismo, inicialmente ligada diretamente ao Ministro de Estado e posteriormente
subordinada ao crivo do Ministro da Educação e Cultura, tinha suas atribuições
voltadas para a implantação e manutenção da "doutrina" da Educação
Moral e Cívica, de acordo com a lei.
Um órgão foi criado
exclusivamente para fazer com que o Decreto realmente existisse nos estados e
instituições de ensino de todos os níveis. Dessa forma, cabia à Comissão, entre
outras finalidades, cultuar a Pátria, seus símbolos, tradições, instituições e
grandes vultos de sua história. De acordo com essa finalidade, seria sua
atribuição estimular a realização de solenidades cívicas ou promovê-las.
A disciplina,
instituída não apenas para ser lecionada na escola, teve papel importante na
divulgação de discursos instituídos no sentido de estabelecer uma verdade. Um
dos elementos ressaltados foi a ausência de preconceitos no país por meio da
afirmação de que vivíamos uma democracia não apenas no campo político, mas
também social e cultural. Assim, faz-se inferência ao surgimento de uma
educação voltada para a cidadania nos moldes do contexto brasileiro da ditadura
militar. Entende-se, por meio de um esforço realizado pelo governo brasileiro,
a institucionalização de mecanismos para a inserção de ideias, conceitos e
discursos formadores de uma identidade nacional.
Silva (2006) em seu
Dicionário de Conceitos Históricos afirma que "toda identidade é uma
construção histórica" (p. 204) e, portanto, encontra-se sujeita ao tempo
histórico em que é criada. Desse modo, cada tempo histórico pode ser capaz de
produzir uma identidade que procura estabelecer-se na condição precípua e
imutável. A reformulação de conteúdos, com a posterior inserção da Educação
Moral e Cívica, representou mais um exercício do poder, no caso, político,
sobre uma área importante da sociedade, a educação. Popkewitz (2008) afirma que
"aprender gramática, ciências ou geografia é também aprender disposições,
consciência e sensibilidades em relação ao mundo que está sendo descrito"
(p. 185). Assim, a inclusão ou exclusão de uma matéria escolar representa também
um objetivo a ser alcançado na elaboração de um discurso. Dessa maneira, a
Educação Moral e Cívica, a partir do decreto-lei que a institucionaliza em
todas as esferas educacionais, é apontada pelo estudo com o status de
disciplina constituinte de uma identidade nacional brasileira nesse período.
Entender uma
identidade permite que seja compreendido o modelo de identidade que se
procurava estabelecer. A educação configura-se como um dos campos de maior
destaque não só na produção, mas na imposição de afirmações e pensamentos
identitários. Subirats (2000) afirma ser a finalidade da educação "a
produção de personalidades capazes de viver em sociedade" (p. 195). Mas,
como se produzir uma personalidade capaz de viver em sociedade? Para o governo
militar brasileiro o caminho seria a criação de uma educação moral e cívica
como disciplina obrigatória. O Decreto-lei nº 869, de 12 de setembro de 1969,
foi sancionado pelos Ministros da Marinha de Guerra, do Exército e da
Aeronáutica Militar, valendo-se dos Atos Institucionais, que lhe conferiam
plenos poderes.
Assim como no início
da chamada idade moderna na Europa, a massificação da educação escolar
aconteceu para atender uma suposta necessidade social de estabelecer ordem
social por meio de padrões de valores religiosos, sociais e morais. A escola
brasileira, na segunda metade do século XX, conheceu o início de sua expansão e
massificação. A educação escolar passa a ser obrigatória a todas as crianças, a
partir dos 7 anos de idade. A reforma educacional proposta pela lei 5.692, de
11 de agosto de 1971, estabeleceu a obrigatoriedade. De acordo com dados
apresentados por Romanelli (2006), houve um aumento acentuado no ensino em
geral a partir de 1964.
O crescimento da
oferta de ensino no Brasil entre as décadas de 1960 e 1980, com sua posterior
massificação, atende a interesses bem específicos. Do ponto de vista econômico,
é impossível não relacionar o crescimento industrial e urbano com a demanda por
mais vagas nas escolas. A taxa de escolarização, na década de 1970, representava
53,72% da população em idade escolar enquanto que na década de 1950 era de
26,15%, representando, pois, a duplicação desse percentual em vinte anos.
De acordo com a
reflexão do sociólogo Florestan Fernandes (APUD Romanelli, 2006, p. 69), a
educação promovida pelo governo, em 1960, era um Estado "fundador de
escolas", cumprindo apenas a função de construir, administrar e
supervisionar o sistema nacional de educação. A concentração das pessoas nas
áreas urbanas passou a ser maior do que nas rurais a partir do final da década
de 1960 e início da década de 1970, gerando com isso uma demanda cada vez maior
pelo ensino escolar. Para resolver esse problema premente, o governo
brasileiro adotou uma série de medidas com o objetivo de minimizar o déficit oferecido
na educação escolar pública.
A legitimação do poder político dos militares encontrou na educação escolar um caminho viável para inserir na sociedade vários discursos. Promover conceitos tais como homogeneidade entre os grupos sociais e regiões do país, contribuindo para a afirmação de uma identidade nacional refletia, de maneira apropriada, o interesse em salvaguardar a segurança nacional e o desenvolvimento econômico.
A legitimação do poder político dos militares encontrou na educação escolar um caminho viável para inserir na sociedade vários discursos. Promover conceitos tais como homogeneidade entre os grupos sociais e regiões do país, contribuindo para a afirmação de uma identidade nacional refletia, de maneira apropriada, o interesse em salvaguardar a segurança nacional e o desenvolvimento econômico.
De acordo com Fonseca
(2005), "o projeto delineado nos planos e programas de desenvolvimento, na
legislação e nas diretrizes governamentais representa o ideário educacional dos
setores políticos dominantes" (p.16). Assim, os discursos elaborados e
transmitidos por meio da Educação Moral e Cívica atendiam a interesses específicos
de parcela da população, a quem interessava manter a sociedade na mais completa
ordem social 'como sempre havia sido em toda história do país'. A construção de
uma identidade nacional harmoniosa e sem conflitos pode ter sido um dos motes
na elaboração de projetos e atividades em todas as esferas as quais a Educação
Moral e Cívica atuava, com os seus órgãos de normatização e gerência do ensino.
Referências
BRASIL. Decreto-lei nº
869, de 12 de setembro de 1969. Dispõe sobre a inclusão da Educação Moral e
Cívica como disciplina obrigatória, nas escolas de todos os graus e
modalidades, dos sistemas de ensino no País, e dá outras providências. Diário
Oficial [da] República Federativa do Brasil, Brasília, DF, 15 set. 1969.
Disponível em:
Acesso em: 28 jan.
2016.
BRASIL. Decreto nº
68.065, de 14 de janeiro de 1971. Regulamenta o Decreto-lei nº 869, de 12 de
setembro de 1969, que dispõe sobre a inclusão da Educação Moral e Cívica como
disciplina obrigatória, nas escolas de todos os graus e modalidades dos
sistemas de ensino no País, e dá outras providências. Diário Oficial [da]
República Federativa do Brasil, Brasília, DF, 15 jan. 1971. Disponível em: http://www2.camara.leg.br/legin/fed/decret/1970-1979/decreto-68065-14-janeiro-1971-409991-publicacaooriginal-1-pe.html. Acesso em: 28 jan. 2016.
BRASIL. Lei nº 5.692,
de 11 de agosto de 1971. Fixa Diretrizes e Bases para o ensino de 1º e 2º
graus, e dá outras providências. Diário Oficial [da] República Federativa do
Brasil, Brasília, DF, 12 ago. 1971. Disponível em:
<http://www2.camara.leg.br/legin/fed/lei/1970-1979/lei-5692-11-agosto-1971-357752-norma-pl.html>. Acesso em: 28 jan. 2016.
FILGUEIRAS, Juliana
Miranda. A educação Moral e Cívica e sua
produção didática: 1969 - 1993. 2006. 222 f.. Dissertação (Mestrado em
Educação) - Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo, 2006.
Disponível em:
FONSECA, Selva
Guimarães. Didática e prática de ensino
de história: Experiências, reflexões e aprendizados. 4 ed. Campinas, SP:
Papirus, 2003.
POPKEWITZ, Thomas S.
História do currículo, regulação social e poder. In: O sujeito da educação: estudos foucaultianos. SILVA, Tomaz Tadeu da
(org.), 6a. ed., Petrópolis, RJ: Vozes, 2008. p. 173-210.
ROMANELLI, Otaíza de
Oliveira. História da educação no
Brasil: 1930/1973. 30 ed. Petrópolis, RJ: Editora Vozes, 2006. 267 p.
SILVA, Kalina
Vanderlei. Dicionário de conceitos
históricos. 2. ed. São Paulo: Contexto, 2006.
SUBIRATS, Marina. A
educação do século XXI: a urgência de uma educação moral. In: A educação no século XXI: os desafios do
futuro imediato. IMBERNÓN, F. (org.). Trad. Ernani Rosa, 2. ed., Porto
Alegre: Artes Médicas Sul, 2000.
Cara Amanda;
ResponderExcluirem tempos de 'volta regime militar', vc acha que uma disciplina do tipo moral e cívica podem voltar tambem?
obrigado
Franciele Marques Silva
O controle da ordem sempre esteve vigente nas políticas curriculares das escolas brasileiras. Acabou a disciplina Educação Moral e Cívica, mas será que não temos outras para substituí-la ou continuar mantendo a ordem?
ResponderExcluirJosé Valter Castro
Prezada Amanda,
ResponderExcluirObrigada pelo texto. Nestes tempos é interessante relembrar a EMC.
Fiquei curiosa para saber como acontecia na prática a disciplina de Educação Moral e Cívica. Você tem alguma informação sobre isso? Como se verificava se o/a professor/a estava efetivamente cumprindo a ementa, etc, já que certamente nem todos os professores/as concordavam com o regime e cumpririam o designado à risca.
Renata da Conceição Aquino da Silva