O GUIA DO VIAJANTE NO TEMPO E NO ESPAÇO:
UMA PROPOSTA DE ESCRITA DE NARRATIVA HISTÓRICA EM SALA DE AULA
Carolina Corbellini Rovaris
Este trabalho tem como
objetivo apresentar uma proposta de atividade desenvolvida pelos alunos do
curso de Bacharelado e Licenciatura em História (Carolina Corbellini Rovaris,
Claúdio Luiz Pacheco e Jéssica Cristina Back Gamba), da Universidade do Estado
de Santa Catarina (UDESC), durante a disciplina de Estágio Curricular
Supervisionado, e os seus resultados após ser realizada em uma turma de
primeiro ano de ensino médio de uma escola pública da rede estadual de Santa
Catarina, no ano de 2014.
A temática definida
pela professora regente da turma em que desenvolvemos a prática do estágio foi
Grécia e Roma na Antiguidade. Neste sentido, no primeiro semestre de 2014,
elaboramos um projeto de ensino de História a partir das observações realizadas
em sala de aula. O principal objetivo do projeto era desenvolver o pensamento
histórico nos alunos, a fim de capacitá-los com ferramentas de investigação
próprias do saber histórico. A partir desta perspectiva, a proposta foi
analisar as relações entre diferentes períodos históricos através do estudo da
Antiguidade e sua relação com o presente. Ela se faz necessária porque quando
questionados sobre o que entendiam por História, os estudantes responderam de
um modo geral, que é o estudo do que "já aconteceu há muito tempo, estudo
de tempos passados, das gerações passadas". Percebemos, portanto, que a
disciplina é tomada somente como algo que estuda o que está distante da sua
realidade. Os alunos não enxergam no estudo da História a possibilidade de
desenvolvimento crítico e a contribuição da mesma para compreender e propor
soluções para problemas sociais atuais, como preconceito e desigualdades, por
exemplo.
Tomando o ensino de
História a partir da cognição histórica situada (SCHMIDT, 2009), considera-se
que seu objetivo principal é desenvolver o pensamento histórico nos alunos,
isto é, capacitá-los com ferramentas de investigação próprias da ciência
historiográfica para trabalharem a partir da análise de documentos e/ou
acontecimentos históricos. A concepção de aprendizagem histórica que se quer
como modelo significa apreender os métodos de pesquisa e dar significado ao
saber histórico, uma vez que o mesmo adquire sentido no decorrer de
preocupações do presente instigando à pesquisa do passado.
Para que o aluno
consiga desenvolver o pensamento histórico ele precisa dominar habilidades de
leitura, escrita e interpretação que o possibilitará compreender as relações
entre passado e presente, perceber os movimentos que amarram diversas
temporalidades, sujeitos e contextos diferentes (SILVA, 2012). Isto porque para
que haja compreensão histórica se faz necessário apreender a especificidade da
História. Aliada a isto, é necessário, também, que o aluno desenvolva
habilidades de leitura e de escrita que o permitam, através da linguagem, atuar
criticamente na sociedade em que vive (SOARES, 2004).
Tendo este panorama em
vista, a intervenção na turma foi pensada a partir da ideia de aula-oficina: o
aluno terá espaço para demonstrar seu conhecimento prévio acerca das temáticas
abordadas, e o professor, na condição de agente investigador, buscará aquilo
que os alunos já sabem para organizar atividades que permitam complexificar e
problematizar os conceitos a serem estudados (BARCA, 2004). No percorrer das
aulas, o primeiro momento se deu de forma expositivo-dialogada. Em seguida, os
alunos foram instigados a fazer uma atividade visando produzir conhecimento
através do que foi discutido.
A partir desta
concepção de aula, elaboramos uma proposta de atividade de escrita individual
para ser realizada em sala: o guia do viajante no tempo e no espaço. A proposta
tinha como objetivo instigar os alunos a produzirem narrativas
problematizadoras e a relacionar seu conhecimento cotidiano com o conhecimento
científico. Após uma aula abordando a cidadania na Antiguidade e no presente,
os alunos deveriam escrever uma narrativa que abordasse as duas temporalidades,
percebendo rupturas e continuidades. Mas a proposta lhes impunha outro desafio:
criar uma narrativa que apresentasse a possíveis leitores o conteúdo trabalhado
como se estes fossem viajantes no tempo. Isto é, criar uma narrativa dinâmica e
bidimensional, utilizando o tempo verbal no presente apresentando questões do
passado:
"Agora você é um viajante pelo tempo e
espaço. O passado e o presente se diferenciam e se aproximam em algumas
questões. Uma delas é o ser cidadão. O que o/a faz ser considerado/a cidadão?
Imagine que você fez uma viagem no tempo e desembarcou no Mediterrâneo Antigo.
Circule no mapa o local de chegada. Neste local, você seria considerado um
cidadão ou um estrangeiro? Por quê?"
Para além do
desenvolvimento da escrita e do processo criativo dos alunos, a atividade tinha
como objetivos abordar diferentes períodos históricos, interpretando-os como um
processo e desenvolver nos alunos a capacidade de pensar o outro como sujeito
do seu próprio tempo, desconstruindo noções de hierarquia entre presente e
passado.
Vinte e quatro alunos
estavam presentes no dia desta atividade. Destes, quatro não a concluíram. No
entanto, algumas marcas no papel nos dão alguns indícios: início de sentenças
como "ser cidadão é" e a presença de marcadores para iniciar uma
lista de respostas. Já percebemos, a partir daí, a dificuldade que estes alunos
têm em desenvolver, através da língua escrita, suas ideias. Marcas de leitura e
tentativa de reescrita da resposta também apareceram em outras cinco
atividades: textos riscados com um "x" em cima ou frases inteiras
apagadas com corretivo de caneta.
Nas atividades que
foram concluídas, percebemos não só uma dificuldade em atribuir sentido ao que
se quer expressar através da escrita, bem como dificuldades decorrentes do
próprio processo de alfabetização: problemas de sintaxe, gramática, estilística
e até de semântica. Isto porque dominar a escrita é um trabalho que exige
prática contínua. Se os alunos não são instigados a escrever e estão
acostumados com atividades de transcrição de informações de textos para fazer
atividades no ambiente escolar, a prática da escrita terá pouco rendimento e
aproveitamento. As habilidades de se apropriar dos mecanismos de codificação da
língua escrita não serão desenvolvidos. Abaixo segue a produção do aluno João
(nome fictício), feita durante a aula de História do dia 19 de agosto:
"Eu me favorecia como um cidadão
porque seria melhor então eu pagaria meu impostos, serto sem precisar correr
alguns riscos como ser um dos exercito de Roma. Porque eu não seria um dos
exercito de Roma quero dizer um guerreiro Eu poderia correr muitas guerras e
não poderia ver a minha família dia indiante e fora muitos propósitos também
mais essa é uma delas."[sic]
Percebemos na escrita
acima que João tentou elaborar uma resposta tentando fazer comparações entre o
que era considerado ser guerreiro na Antiguidade e a sua visão do que isto
significa nos dias atuais, bem como o ônus de exercer esta função a partir de
valores contemporâneos e não propriamente dos sujeitos da época. Tentou
atribuir sentido às suas ideias através da escrita. Contudo, observa-se a
dificuldade em fazê-lo: a disposição das palavras na frase e a relação lógica
entre as mesmas nos demonstram a dificuldade em emitir um significado completo
e compreensível a possíveis leitores.
Na resposta de José,
produzida no mesmo dia que a de João, ficam visíveis as práticas de escrita as
quais o aluno está acostumado nas aulas de História: perguntas específicas que
solicitam respostas diretas, sem problematizações.
"R.: Ser cidadão hoje é ter direitos
ter documentos, opinião publica.
R.: Ser cidadão naquela época era ter 18
anos e ser um homem livre, crianças mulheres e escravos não eram considerados
cidadãos."
O aluno não conseguiu
desenvolver uma narrativa diferenciada conforme solicitado pelos estagiários.
Antes da resposta em si o aluno inicia a frase com a letra "R.:",
anunciando que a resposta direta às questões do enunciado virá em seguida. Cada
pergunta foi respondida separadamente, não havendo conexão entre as duas
temporalidades. Além disto, o aluno mobilizou na resposta, talvez para tentar
deixá-la mais satisfatória, informações que haviam sido trabalhadas
anteriormente na aula expositiva: "crianças mulheres e escravos não eram
considerados cidadãos.". Não é evidente na resposta o porquê desta
informação estar ali presente e por que ela justifica ou não o próprio aluno
ser considerado cidadão. A tentativa de construir uma narrativa histórica com
explicações multidimensionais não foi alcançada. Diferentemente do que
observamos na resposta de Maurício:
"Primeiramente, preciso pertencer a um
local e estar registrado. Consequentemente, irei possuir a cultura do local e
tendo registro, terei direitos e deveres, ou seja, ser livre. Seria considerado um
estrangeiro, pois não teria nascido em Roma. Porém, no período do Império, eu
poderia me tornar um cidadão por conta da expansão territorial. O cidadão
deveria ter a maioridade (18 anos), ser homem e ter nascido em Roma.
Extensão questão 1. Tenho direitos e
deveres por existir uma constituição no país a qual pertenço e seguir os
deveres significa respeitar e cumprir o que é estabelecido na constituição,
logo quando não sigo o dever, torno-me um ser que não é totalmente livre,
apesar de ainda ter direitos dentro desta condição."
Nesta resposta notamos
que o aluno já domina melhor os mecanismos de escrita e de leitura. Após uma
releitura mais atenta da sua resposta, o aluno decidiu inserir mais informações
na primeira parte do texto. Isto indica o esforço do estudante em ampliar o
sentido e significado daquilo que havia escrito, reforçando o que entende por
ser cidadão e tornando a resposta, a seu ver, mais satisfatória.
A partir destas
análises evidenciamos que é necessário trabalhar com nossos alunos atividades
em que os mesmos possam desenvolver um conjunto de operações intelectuais,
mobilizadas na produção de saberes, que ampliem o pensamento histórico. Para
isto, torna-se igualmente importante trabalhar a compreensão histórica a partir
de leitura de textos, interpretação de gráficos e de documentos, para que o
aluno entenda as intenções e os pressupostos de uma narrativa já construída. Ao
trabalharmos tais habilidades, o aluno poderá identificar as relações entre
passado e presente, isto é, compreender as possibilidades da disciplina de
História, para além do seu aspecto conceitual e de conteúdo (CAIMI, 2006).
Se pretendemos um
ensino de história nas escolas no qual esta disciplina é encarada como uma
possibilidade de construção de um futuro possível, a partir da inserção do
indivíduo na sociedade e na sua atuação crítica em relação ao que está ao seu
redor, é necessário e imprescindível considerar de que maneira estes estudantes
articulam suas vivências cotidianas às narrativas históricas.
Referências
BARCA, Isabel. Aula Oficina: do Projeto à Avaliação. In. Para uma educação de qualidade: Atas da Quarta Jornada de Educação Histórica. Braga, Centro de Investigação em Educação (CIED) / Instituto de Educação e Psicologia, Universidade do Minho, 2004, p. 131 - 144.
Referências
BARCA, Isabel. Aula Oficina: do Projeto à Avaliação. In. Para uma educação de qualidade: Atas da Quarta Jornada de Educação Histórica. Braga, Centro de Investigação em Educação (CIED) / Instituto de Educação e Psicologia, Universidade do Minho, 2004, p. 131 - 144.
CAIMI, Flavia Heloisa.
Por que os alunos (não) aprendem História? Reflexões sobre ensino, aprendizagem
e formação de professores de História. Tempo.
Rio de Janeiro, v. 11, n. 21, 2006.p. 17-32.
SCHMIDT, Maria
Auxiliadora Moreira dos Santos. Cognição histórica situada: que aprendizagem
histórica é esta? In: XXV SIMPÓSIO
NACIONAL DE HISTÓRIA - ANPUH, Fortaleza: 2009. Anais eletrônicos: Disponível
em:
SILVA, Cristiani
Bereta da. O ensino de história - algumas reflexões do Reino Unido: entrevista
com Peter J. Lee. Revista Tempo e
Argumento, Florianópolis, v. 4, n. 2, pp. 216 - 250, jul/dez. 2012.
SOARES, M. Letramento: um tema em três gêneros. 2
ed. Belo Horizonte: Autêntica, 2004.
ResponderExcluirBoa Tarde, Carolina. Parabéns pelo trabalho!
De que forma o professor de história pode trabalhar de maneira interdisciplinar, junto ao professor de língua portuguesa , afim de desenvolver as habilidades multidimensionais necessárias para a compreensão da relação passado presente?
Bruno F. Matsumoto.
Boa noite Bruno, muito obrigada!
ExcluirPenso que o ideal seria que trabalhássemos sempre de maneira interdisciplinar, pois desta forma ampliamos ainda mais as possibilidades da disciplina de História. Dito isto, penso que poderíamos trabalhar com o professor de português especificamente quando este desenvolve com os alunos a redação. As temáticas desta escrita poderiam ser referentes aos assuntos abordados na aula de história. E, em contrapartida, na aula de História trabalharíamos com os alunos as ferramentas próprias do saber histórico e os seus conceitos, sempre relacionando passado com o presente. É uma possibilidade!
Abraços!
Carolina Corbellini Rovaris
Carolina,
ResponderExcluirGostei muito da proposta. Você acha que poderíamos mesmo, fazer livros didáticos nesse sentido? [guias sobre o passado?]
saudações,
André Bueno
Boa noite André. Obrigada pela intervenção!
ResponderExcluirAo trabalhar com o guia nós precisamos ter alguns cuidados. O principal é em relação ao anacronismo, visto que como a proposta solicita uma explicação multidimensional, às vezes pode haver algumas confusões por parte dos alunos. É preciso orientação. Desta forma, penso que o guia funciona melhor como uma atividade da aula do que como material didático. Talvez, como material didático a proposta se tornaria massante, pois ela demanda mais tempo e mais trabalho. Eu nunca havia pensado sobre isto, portanto esta é uma opinião minha mesmo a partir desta experiência que tive. Espero ter respondido a sua intervenção.
Abraços,
Carolina Corbellini Rovaris
Boa noite Carolina,
ResponderExcluirAdorei o seu trabalho!
Possui alguma sugestão de como o Professor poderia através da interdisciplinaridade utilizar a
disciplina de artes problematizando e relacionando o passado com o presente?
Livia Froes Petersen
Boa noite Lívia, obrigada pelo comentário!
ExcluirPenso que na área das artes, os artistas/autores desenvolvem trabalhos que são, mesmo que indiretamente, reflexos da realidade em que vivem. Neste sentido, a disciplina de artes poderíamos trabalhar com as representações do presente e do passado. Por exemplo, como determinada sociedade representou/compreendeu o seu passado e determinado tempo e espaço. Ou até mesmo com as escolas, técnicas e tendências nas artes se modificaram ao longo do tempo em diversos lugares. Bem, estas são algumas divagações, mas acredito que seja possível e enriquecedor trabalhar a interdisciplinaridade em sala de aula.
Abraços,
Carolina c. Rovaris
Olá CArolina,
ResponderExcluirMuito bacana.
Diante dos resultados da atividade, qual foi o passo seguinte trabalhado? Vocês retornaram à temática para fechar alguns pontos deixados pelos alunos?
Abraço!
Ailton Ribeiro Nascimento
Boa noite Ailton!
ExcluirObrigada pelo comentário.
Sim, após o término e correção da atividade, nós continuamos trabalhando com os alunos acerca do assunto, até porque observamos que eles tiveram muitas dificuldades. Ao mesmo tempo, desenvlvemos outras propostas de escrita para trabalhar com eles este aspectos, tanto no desenvolvimento das ferramentas do saber histórico, citadas no texto, bem como em relação ao conteúdo em si.
Abraços,
Carolina C. Rovaris