ENSINO DA HISTÓRIA ANTIGA E ARTE SEQUENCIAL: ESBOÇOS
INTRODUTÓRIOS
José Maria Neto
“Decidi obrigá-los a
aceitar esta civilização!
A floresta será
destruída para dar lugar a um parque natural!
Enfim, prédios
circundarão a aldeia,
que não passará de
uma simples anforaldeia condenada
a se adaptar ou a
sumir do mapa.”
(UDERZO e GOSCINNY, 1985, p. 5)
(UDERZO, GOSCINNY, 1985)
Na revista O Domínio dos Deuses (Le Domaine des dieux, publicada
originalmente na França em 1971), um enfurecido Júlio César desabafa com seus
subordinados toda sua frustração: conquistara a Gália inteira, à exceção de uma
pequena aldeia de irredutíveis, Asterix e seus colegas, todos “encharcados de
poção mágica” e que permaneciam “debochando do poder de Roma”. Suas legiões
eram incapazes de derrotá-los, então optou por uma tática mais sutil, envolve-los
com os marcos da cultura romana, encharcá-los nela, modificando de uma vez por
todas seu modo de vida – passariam, pois, a aceitar o domínio imperial e, inclusive,
tomariam parte nele.
Obviamente, a sátira que os autores
René Goscinny e Albert
Uderzo elaboraram não retrata a realidade da Antiga Roma – o diálogo de
César com seus conselheiros fala muito mais do momento no qual a revista foi
criada, os anos 1970 do século XX d.C., do que propriamente das últimas décadas
antes da Nossa Era; não obstante, a leitura feita do Imperialismo Romano
condizia com o que a historiografia pensava naquele momento. Logo, bem se vê
que havia uma dinâmica intrínseca àquela revista, na qual a ficção
contemporânea e o conhecimento sobre a Antiguidade se fundiam – entrada
possível para a construção de uma cultura histórica, “a própria memória
histórica, exercida na e pela consciência histórica, a qual dá ao sujeito (...)
uma direção para a atuação e autocompreensão de si mesmo” (SCHMIDT, 2014, p.
40).
Questões prementes do mundo que nos
cerca – conflitos, crises, mudanças permanências, alteridades, identidades,
contatos, resistências – eram pertinentes à Antiguidade como ainda o são em
nossos dias, fazem parte do patrimônio de nossa memória e da nossa afetividade,
e podem, portanto, lançar luzes ao nosso próprio tempo vivido. Desta forma,
quando falamos de César, falamos de nós mesmos e, inversamente, ao buscar sua
velha figura e colocá-la em situações modernas, reconhecemos que há elos entre
nós e o mundo antigo; não uma Antiguidade “dada, acabada, a ser decorada pelo
aluno” (FUNARI, 2005, p. 98), mas antes trabalhada como possibilidade,
construção das várias épocas que sobre ela se debruçaram e refletiram. Neste
contexto, a literatura em geral, e os quadrinhos em especial, emergem como
poderosos elementos para o aprendizado desta História, pois estão repletas de
inquietações, servem às comemorações e rememorações da realidade, propiciam novas
estratégias de ensino e a produção de conhecimento histórico sob a capa da
espontaneidade, a ser explorada, já no ensino superior, pelos futuros professores
do ensino médio, inserindo novas abordagens neste aprendizado sem, contudo,
abdicar da contextualização fundamental, construindo pontes para diminuir as
distâncias espaço-temporais e procurando soluções para realçar valores e
conceitos que, amiúde, estão presentes à nossa volta.
Optamos por lançar mão do conceito “arte
sequencial” por representar, para o professor de História Antiga, uma grande oportunidade
de relação entre objeto de trabalho ao tempo vivido, pois como bem observou
Scott McCloud, é a definição mais ampla em termos de limites, sem se constranger
a um gênero ou traço específico, mas tão-somente à justaposição de imagens com
um significado continuado entre si, instrumental metodológico que rompe a data
convencional de invenção dos quadrinhos e abre novas perspectivas, levando-os “bem
longe no futuro e bem longe no passado, antes do ‘ponto de partida’ artificial
em 1896 e ‘The Yellow Kid’...
chegando mais de três mil anos atrás! Há uma riqueza incrível nos quadrinhos
antigos, e alguns podem ter a chave pro futuro desse meio!” (McCLOUD, 2005, p.
199, 200).
Se este recuo representa um ganho para
a arte per se, não significa menos
para o ensino de História, pois vários artefatos antigos podem (“devem” seria
mais exato) ser interpretados à luz do conceito desta definição, o qual
restaura um pouco da vitalidade que originalmente possuíam, amiúde negada nas
abordagens convencionais de peças da Antiguidade. Um bom exemplo dessa análise
é o Estandarte de Ur, um dos objetos
sumerianos mais reverenciados pela cultura contemporânea. Preservado no British Museum, em Londres, consiste na
caixa de ressonância de uma lira, executada no sul da Mesopotâmia por volta de
2600 a.C.; de forma trapezoidal, seus dois lados maiores apresentam cenas da
vida quotidiana (a “face da paz”) e dos combates “(a face da guerra). Vistas em
separado, suas figuras humanas em madrepérola sobre um fundo azul de
lápis-lázuli são interessantes; contudo, quando utilizado o conceito de arte sequencial,
são percebidas em uma série de cenas de ação: primeiro, o palafreneiro segura
quatro asnos atrelados a uma carruagem de guerra, enquanto uma figura em traje
de combate segura cordas mais atrás; em seguida, este personagem, já embarcado,
toma as rédeas, e tem atrás de si um lanceiro; por último, o conjunto está em
plena ação, com o lanceiro exercitando sua arte mortífera enquanto o carro
passa por sobre um inimigo caído.
O Estandarte de Ur é um dos muitos
exemplos de artefatos provenientes da Antiguidade que ganham novo ritmo quando
vistas sob os óculos da arte sequencial: o afresco dos jovens cretenses
saltando sobre um touro, rapazes atenienses montados em seus cavalos nos frisos
do Pártenon, a procissão de nobres romanos do Ara Pacis construído pelo imperador Otávio Augusto em Roma... todos
originalmente elaborados para serem vistos e compreendidos como dinâmica,
condição perdida pelo tempo e passível de restauração quando aplicado o
instrumental teórico apropriado. A recuperação do movimento e do ritmo – numa
palavra, da vitalidade – da Antiguidade é um dos desafios da Historiografia contemporânea,
e a transmissão social dos resultados das pesquisas, transformação em linguagem
visual acessível dos mais recentes achados arqueológicos, confere
compreensibilidade a elementos cuja interpretação, fora dos grupos
especializados seria, de outra forma, muito restrita.
Em seu texto Os quadrinhos na aula de História, Túlio Vilela situa precisamente
a inserção dessa leitura na sala de aula, caracterizando-a como “mais um
recurso pedagógico que pode trazer bons resultados se bem empregados”, mas
alerta: como o cinema e a literatura ficcional, “os quadrinhos são muitas vezes
vistos pelo professor como apenas suporte de um conteúdo. Eles podem ser mais
do que isso” (VILELA, 2005, p. 106). A
nosso ver, tal equiparação entre as artes vem bastante a calhar, pois a
utensilagem teórica disponível, por exemplo, para a análise do cinema no ensino
de História, é igualmente pertinente para os quadrinhos, perspectiva apoiada no
trabalho de Scott McCloud:
O raciocínio tradicional há muito tempo tem sustentado que
obras de arte e literatura só são realmente boas quando mantidas a uma certa
distância uma da outra. Palavras e figuras juntas são consideradas, na melhor
das hipóteses, uma diversão pras massas; na pior das hipóteses, um produto do
comercialismo crasso. (...) Enquanto isso, as palavras e o cinema fascinam o
mundo com seu charme, mas eles tem que se esforçar pro seu potencial ser
compreendido. (McCLOUD, 2005, p. 140, 141).
Como bem colocou a historiadora Maria
Wyke, o cinema possui uma “profunda
função” na constituição de uma consciência histórica, uma perspectiva de
estudos clássicos que objetiva não somente revelar a Antiguidade, e sim
“expor, ao invés de ocultar, os interesses ideológicos locais – as várias
misoginias, etnocentrismos, elitismos e imperialismos – tanto da Antiguidade
quanto das suas apropriações subsequentes” (WYKE, 1997, p. 7), de modo que longe
de compor uma narrativa de feitos e realidades dadas e acabadas, num reflexo da
nossa compreensão contemporânea do passado, busca o contrapelo, os conflitos, sem
se eximir de “definir e debater nossa relação com aquele mundo”. A arte
sequencial não está ausente desta perspectiva: quadrinhos, os mais fidedignos
como os nem tanto, ao recriar o passado, são sempre agentes de construção de
cultura histórica, fato claramente perceptível nas produções das editoras
comerciais – e como poucas publicações podem ser mais mainstream do que as Disney, comecemos analisando um clássico do
gênero, a História e Glória da Dinastia
Pato (Storia e gloria della dinastia dei paperi originalmente
publicada na Itália, entre abril e maio de 1970, na revista Topolino, seguindo o roteiro de Guido
Martina com desenhos de Romano Scarpa e Giovan Battista Carpi).
(EDITORA Abril, 2009)
Para uma criança ou um adolescente no
Brasil de 1974, quando a primeira parte da saga foi lançada, ou de 1987,
publicação do seu inteiro teor na edição número 100 da coleção Disney Especial, esta narrativa da árvore
genealógica do Pato Donald, cuja primeira etapa passa-se no Egito Antigo, pode
muito bem ter sido um dos primeiros contatos com o conjunto de imagens que
associamos, quase osmoticamente, ao país do Nilo: lá estão a pirâmide e os
camelos, o deserto e a rainha Cleópatra (chamada Cleopata e “vivida” pela Margarida). As imprecisões são abundantes,
como reconhecido pela própria editora na versão mais recente do álbum, mas ao
invés de provocar a rejeição da obra na sala de aula, elas devem, pelo
contrário, servir ao aprendizado – não podem jamais ser utilizados sem a
intervenção do professor, o qual deverá discuti-los com seus alunos e
contextualizá-los, e nesse processo, “os erros podem servir de ponto de partida
para informações historicamente corretas” (VILELA, 2005, p. 121): na época na
qual se passa a história (grosso modo, o Império Tardio), pirâmides ainda eram
construídas? Existiam camelos ou dromedários domesticados? Havia ampla cunhagem
de moedas? A resposta a tais perguntas é ‘não’, mas este é o momento preciso da
edificação do conhecimento, de questionamento do tempo vivido e de construção
do conhecimento baseado na Historiografia: os erros são corrigidos, mas o
diálogo estabelecido entre a imagem (lúdica) e o saber construído em sala não
se perdeu.
O historiador norte-americano Robert
Rosenstone compara o filme à produção historiográfica, pois tanto um quanto
outra não só elaboram e rearranjam os vestígios legados pelo passado, quanto,
quando necessário, se permitem inventar fatos para compor suas narrativas: “o objetivo não é fornecer verdades literais
acerca do passado (como se a nossa história escrita pudesse fazê-lo), mas
verdades metafóricas que funcionem, em grande medida, como uma espécie de
comentário, e desafio, em relação ao discurso histórico tradicional”
(ROSENSTONE, 2010, p. 94); esta perspectiva pode ser válida também para a
arte sequencial, percebendo-a como leitura elaborada a posteriori que fala sobre o conhecimento então disponível sobre o
tema – e nesse sentido, o fato de Pah-Tih-Nhas,
tesoureiro da rainha Cleopata,
transformar o tesouro real em moedas de ouro e estocá-las numa pirâmide (num
período em que a cunhagem de moedas ainda engatinhava e a construção destas
estruturas havia sido abandonada) fornece ao professor que lida com esta
leitura amplas oportunidades de envolvimento com seus alunos, e de
desenvolvimento do seu conhecimento histórico – como observou Raquel dos Santos
Funari (2004, p. 152), “indiscutivelmente, as revistas de HQ, por fazerem parte
importante do universo de crianças e jovens, podem ser igualmente utilizadas
como ferramenta pedagógica criativa e eficiente”.
Sobre estas construções metafóricas, há
que se perguntar qual seu interesse no retorno ao passado: mera “ambientação
exótica” para a narrativa, ou efetiva interação “com aquele discurso, fazendo e
tentando responder perguntas que, há muito tempo, circundam um determinado
tópico”? (ROSENSTONE, 2010, p. 74). No caso específico da História e Glória da Dinastia Pato, conquanto seu autor tivesse
formação em Letras e Filosofia, e a Itália possua uma longa tradição de usos da
Antiguidade (Cf SILVA, 2007, p. 36), ela integra o primeiro grupo; há, porém,
exemplos diversos de diálogo entre os quadrinhos, as fontes clássicas e a
historiografia, como Os 300 de Esparta,
de Frank Miller.
Quando do seu lançamento, em 1998, esta
Graphic Novel foi alvo do mais amplo
criticismo, desencadeando, inclusive, batalhas verbais entre seu autor e outros
artistas, como o respeitado Alan Moore, que o acusou de imprecisão histórica ao
apresentar os espartanos criticando seus rivais atenienses por suas práticas
pederásticas; e quando foi transposta às telas, em 2007, a exposição fílmica
trouxe à tona a natureza supostamente racista do texto, que caracterizava os gregos
como heróis e os persas como bárbaros horrendos – ambas posições excelentes
para a discussão histórica, e amparado nela, o profissional de História tem à
disposição um amplo leque de possibilidades para abordar o conteúdo.
O retrato feito dos persas está longe
de ser criação de Miller – de fato, ele traduziu, em palavras e imagens,
representações em voga desde a Antiguidade, e que vem sendo amiúde retomadas
desde o início da Idade Moderna para opor de modo irreconciliável duas esferas,
a saber: o Oriente e o Ocidente. Como bem colocou François Hartog,
(...) essa Europa polêmica dos
gregos, que iria ser também uma Europa política. As guerras médicas serviram de
catalisador para a oposição entre gregos e bárbaros. Ora, qual seria, em suma,
a diferença essencial entre uns e outros? (...) uns são ‘livres’, os outros
submetidos a um senhor. (...) um significado preciso, dotando o antônimo de um
rosto – o do persa – e conferiram-lhe um território, a Ásia, que ele
reivindicava como seu. (HARTOG, 2003, p. 101, 102).
Esta oposição não se extinguiu: o
Ocidente se constituiu como espaço em oposição polêmica ao Oriente, à Ásia, e
tem buscado naquelas que considera suas raízes primeiras, a Grécia, a expressão
mais recuada deste choque, onde encontrou a descrição da liberdade, da
participação política, da individualidade e da autonomia, em contraposição aos
asiáticos dominados e subservientes (Cf HARTOG, 2003, p. 146).
(MILLER, 2006)
Neste universo recuperado por Frank
Miller, o persa é o antípoda do heleno: frequentemente tem a pele escura, seus traços
faciais são meramente esboçados, e mesmo a elite do exército invasor, o
Batalhão dos Imortais, tem aparência assustadora, pois usa capacetes com
máscaras semelhantes às da tragédia grega. Sua feiura destaca a beleza grega.
(MILLER, 2006)
Os espartanos são agrestes, com barbas
cerradas, cabelos em longos cachos chegando até os ombros, faces duras e
longilíneas; diversamente dos seus inimigos, indistintos e obscuros, a
personalidade lhes transparece no semblante. Seus corpos são bem torneados, nádegas
duras – formas que, diga-se de passagem, também deitam suas raízes em ideais
estéticos helênicos, para quem a liberdade política era expressa pelo tônus
corporal dos cidadãos:
O corpo do cidadão é propriedade pública (...) estava lá
para ser observado e comentado (...) vendo que Epigenes, um de seus
companheiros, apresentava uma condição física precária para um homem jovem,
(Sócrates) disse: ‘você tem o corpo de alguém que simplesmente não está
envolvido em questões públicas! (GOLDHILL, 2007, p. 27).
Assim sendo, considerar homofóbico Os 300 de Esparta parece-nos demasiada
simplificação, mas há, de fato, uma fala na qual se pode compreender o discurso
anti-homossexual: quando o mensageiro de Xerxes chega a Esparta, pede ao rei
uma oferenda de terra e água, símbolo da submissão da cidade-estado ao império,
a resposta de Leônidas, com o perdão do trocadilho proposital, é lacônica: “Hmm. Temos um pequeno problema. Boatos dizem
que os atenienses já rejeitaram a sua proposta. E se aqueles efeminados (boy-lovers, no original inglês) tiveram
essa coragem... afinal, nós, espartanos, temos uma reputação a zelar” (MILLER,
2006, p. 12).
Da maneira como foi colocada, fica
parecendo que a prática dos relacionamentos homossexuais em Esparta era
criminalizada, ao contrário do que ocorria em Atenas - ideia que não condiz com
o que diz a historiografia: entre os espartanos, estas relações, mais que
incentivadas, eram um tanto institucionalizadas e forçadas, e os homens,
apartados de suas famílias durante boa parte da vida, viviam em acampamentos
militares, exerciam sua sexualidade entre si e frequentemente em direção aos
meninos recém-chegados ao treinamento, ou aos moços que já participavam dele há
mais tempo – o que torna a expressão original, “Boy-lovers”, ainda mais incorreta do ponto de vista histórico, e
merecedora da desaprovação.
Todavia, conforme o próprio Miller
observou, os espartanos tendiam a criticar seus rivais atenienses; fontes
nativas de Esparta são raras, e conhecemos seus cidadãos, majoritariamente,
através do olhar de seus algozes áticos, os quais os apresentam como hipócritas
moralistas, fanáticos religiosos e devotos de uma existência excessivamente
voltada para o dever e sem liberdade. Logo, a opinião de Leônidas sobre a
prática homoerótica ateniense seria muito mais indício de mero despeito que,
efetivamente, afirmação da inexistência das tais práticas entre os espartanos,
para quem a suposta efeminação ateniense (e nesse sentido, a tradução
brasileira foi extremamente feliz) era, aí sim, motivo para censura.
(MILLER, 2006)
Há, entretanto, uma exceção à beleza
masculina espartana: o traidor Efialtes.
Heródoto o introduz de modo breve: “málio de nascimento e filho de Euridemo, veio procurá-lo [Xerxes] na
esperança de receber uma recompensa” (Livro VII, CCX, p. 870), mostrando aos
invasores uma rota secreta para cercar os defensores no Estreito das Termópilas.
Frank Miller optou por uma abordagem diversa: fez dele espartano de nascimento,
mas deformado – e todos os recém-nascidos com deformidades naquela cidade eram
destruídos: “O amor de minha mãe fez
meus pais fugirem de Esparta para eu não ser eliminado. Meu pai se tornou um
pastor... mas me ensinou o caminho do guerreiro. Eu lhe imploro, bravo rei, que
me deixe redimir o nome de meu pai lutando por você” (MILLER, 2006, n/p).
Esta criatura é a versão bizarra dos
espartanos, um grotesco, “a figura do rebaixamento (bathos na retórica clássica), operado por uma combinação insólita e
exasperada de elementos heterogêneos, com referência frequente a deslocamentos
escandalosos de sentido, situações absurdas, animalidade, partes baixas do
corpo fezes e dejetos” (SODRÉ, PAIVA, 2002, p. 17), e a opção de Miller por
representá-lo assim ecoa antigos padrões helênicos: a feiura de suas carnes transparece
a de seu caráter, forma de representação que encontra paradigma na mais
reverenciada literatura helênica, n’A
Ilíada, de Homero: no Canto II, Tersites, um grego ousou questionar as
lideranças heroicas de sua própria gente, em clara demonstração de indiscutível
desonestidade, algo que o poeta tornou bastante perceptível através de sua
descrição:
Era o mais feio de quantos no
cerco de Troia se achavam.
Pernas em arco, arrastava um dos
pés; as espáduas, recurvas, se lhe caíam no peito, e, por cima dos
ombros, em ponta, o crânio informe se erguia, onde raros cabelos flutuavam.
(Canto II, 216-219, 1989, p. 83).
Assim, Efialtes não por acaso tem essa
aparência: ainda que influenciado pelo cinema (um filme sobre os 300 de Esparta
foi feito em 1962, e impressionou muito o futuro autor), ecoa antiquíssima
perspectiva, traz ao mundo moderno (tanto na cronologia como na colonização de
uma mídia até então intocada pelo tema) visões éticas e estéticas cultivadas
pelos gregos ao longo de sua história.
Conclusão
As metáforas visuais conjuradas na arte
sequencial proporcionam um rico local de discussão para o Ensino de História.
Em suas formas mais palatáveis (ou comerciais) ou em seus exemplos mais
autorais, ilustram conceitos pertinentes à formação do conhecimento histórico,
e cabe ao profissional preparar-se metodológica e teoricamente para
compreendê-las, ou como bem colocou Paulo Ramos, “ler quadrinhos é ler sua
linguagem. Dominá-la, mesmo que em seus conceitos mais básicos, é condição para
a plena compreensão da história e para a aplicação dos quadrinhos em sala de
aula e em pesquisas” (RAMOS, 2014, p. 30).
Bibliografia
Fontes
Primárias:
EDITORA
Abril. História e Glória da Dinastia
Pato. São Paulo: Abril, 2009.
HERÓDOTO.
História. São Paulo: Ediouro, 2001.
HOMERO. A Ilíada. São Paulo: Ediouro, 1989.
MILLER,
Frank. Os 300 de Esparta. São Paulo:
Devir, 2006.
UDERZO, Albert; GOSCINNY, René. O
Domínio dos Deuses. Rio de Janeiro: Record, 1985.
Fontes
Secundárias:
FUNARI, Pedro Paulo. A renovação da História Antiga. In:
KARNAL, Leandro (Org.) História na sala de aula: conceitos, práticas e propostas. São Paulo: Contexto, 2005.
FUNARI, Raquel dos Santos. O Egito na Sala de Aula. In
BAKOS, Margaret (org.). Egiptomania: o
Egito no Brasil. São Paulo: Paris Editorial, 2004.
GOLDHILL, Simon. Amor,
Sexo e Tragédia: como gregos e romanos influenciam nossas vidas até hoje.
Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2007.
HARTOG, François. Os
antigos, o passado e o presente. Brasília: Editora da UnB, 2003.
McCLOUD, Scott. Desvendando
os quadrinhos. São Paulo: M.Books, 2005.
RAMOS, Paulo. A
leitura dos quadrinhos. São Paulo: contexto, 2014.
ROSENSTONE, Robert A. A história nos filmes, os filmes na história.
São Paulo: Paz e Terra, 2010.
SCHMIDT, Maria Auxiliadora Moreira
dos Santos. Cultura Histórica, Ensino e Aprendizagem de História: questões e
possibilidades. In OLIVEIRA, Carla
Mary S.; MARIANO, Serioja Rodrigues Cordeiro (org.). Cultura Histórica e
Ensino de História. João Pessoa, Ed. UFPB, 2014.
SILVA, Glaydson José da. História Antiga e usos do passado. São Paulo: Annablume; Fapesp,
2007.
SODRÉ, Muniz; PAIVA, Raquel. O Império do Grotesco. Rio de Janeiro: Mauad, 2002.
VILELA, Túlio. Os quadrinhos na aula de História. In RAMA, Angela et alli. Como usar os quadrinhos na sala de aula. São Paulo: Contexto, 2005.
WYKE,
Maria. Projecting the past:
Ancient Rome, Cinema and History (New Ancient World). New York: Psychology Press, 1997.
Primeiramente Prof. José Maria Neto quero lhe parabenizar pelo texto, muito esclarecedor, e sou sincero ao dizer que é uma novidade para mim essa abordagem feita sobre "arte sequencial". Logo nas suas linhas introdutórias pude perceber a sua ponderação sobre esse estabelecimento de um dialogo entre o passado e o agora (presente), e essa frase em particular me chamou atenção: "[...] quando falamos de César, falamos de nós mesmos [...] reconhecemos que há elos entre nós e o mundo antigo". A partir disso então gostaria de saber em que amplitude a utilização de imagens contextualizadas, fontes históricas, entre outros recursos dinâmicos podem despertar o interesse do aluno pela História? Mas, mais profundamente, como podemos levar aos alunos essa importância do conhecimento histórico através desses recursos?
ResponderExcluirROMARIO DE MOURA ROCHA
Olá Romário. Obrigado pelos seus elogios. Eu considero fundamental que, em meio a uma sociedade midiatizada como a nossa, nós utilizemos todos os recursos disponíveis para atrair a atenção do nosso alunado. Com o tempo da aula cada vez mais restrito, é fundamental não apenas chamar a atenção dos alunos com elementos multimídia, mas também torná-los em elementos fundamentais para a otimização do tempo. Essa utilização requer uma atenção redobrada e o preparo do profissional de História.
Excluir1. O lúdico é essencial para compreensão de um conteúdo. A dificuldade de introduzir essa ferramenta como complementaridade no ensino de história advém do preconceito do docente?
ResponderExcluir2. A internet não é um concorrente desleal para o uso dessas outras linguagens e com isso incorremos num "reducionismo" metodológico-pedagógico?
Johny Menezes Loiola
1. Acho que a melhor resposta para sua afirmação está na discussão entre o Venerável Jorge e William de Baskerville em O Nome da Rosa: o riso é subversivo, mas ao mesmo tempo gera a impressão da banalidade. Ele precisa ser tomado, segundo William, como "instrumento da verdade". Isso é um desafio.
Excluir2. A internet pode tanto ser uma concorrente desleal quanto um aliado incomparável. Cabe ao profissional de História armar-se do cabedal teórico-metodológico para que a segunda opção prevaleça.
Olá Professor, minha dúvida séria como passar o ensino de história de uma forma dinâmica e interessante,para que os alunos não considerem a disciplina uma forma chata de aprender e também como conseguir tomar a atenção do aluno e trazê-lo para o ensino dessa ciência humana de uma forma espontânea?
ResponderExcluirIsac Silva
Olá Isaac. Não sei se existe essa "forma espontânea" a que você se refere. Como salientei no comentário acima, o que há é um esforço concentrado do profissional de História em aprender novos referenciais teórico-metodológicos e aplicá-los às suas turmas. Muita gente discute o dinamismo e o lúdico em sala de aula, não apenas em História mas em diversas disciplinas. Esse diálogo interdisciplinar é fundamental e bastante frutífero.
ExcluirEste comentário foi removido pelo autor.
ResponderExcluirOlá profJosé Maria!
ResponderExcluir-Sem duvida os quadrinhos foram um dos motivos que me levaram á paixão pela História desde a infância.Seu texto troxe-me boas lembranças e idéias pedagógicas.Pendo que sequencias artisticas podem ajudar muito aos alunos.Voce conhece algum material que possa ajudar nesse sentido(sites ,etc..)?
-Em uma aula apresentei o filme Joana Darc de Luc Besson e vi que os alunos adoraram aquela idade média colorida e real na sua frente.Oque voce acha do cinema como recurso pedagógico?
Grato,Alfredo Coleraus Sommer
Olá Alfredo,
ExcluirO texto mais importante que li sobre este assunto permanece sendo o Scott McCloud, citado no trabalho. Tive oportunidade de ver os mármores romanos antes e depois de ler o livro, e realmente fez a diferença.
Quanto ao cinema, eu trabalho muito com ele, ainda mais do quem com quadrinhos. No evento do ano passado, apresentei uma análise do filme Electra, de Michael Cacoyannis, que você pode encontrar neste link. Depois podemos continuar a conversa. Abraços. http://simpohis.blogspot.com.br/p/jose-maria-neto.html
Seu texto é muito esclarecedor em relação á história em quadrinhos e a filmes, mais o senhor considera que a música pode passar a mesma mensagem para o estudante, a mesma mensagem que uma imagem os traz? Katiane Paula Peixoto
ResponderExcluirOlá Katiane. Acredito que sim. Em termos de História do Brasil, já é canônico, inclusive, o trabalho com música no ensino, mas outras áreas podem se abrir. O Youtube possui vários canais com música da Antiguidade, e procuro utilizá-los - como não sou um especialista na área da música, então procuro criar a atmosfera junto aos meus alunos, mas sei que alguém que compreenda mais a fundo a matéria certamente poderá fazer mais do que isso.
ExcluirEste comentário foi removido pelo autor.
ResponderExcluirO professor pode incluir dentro desta temática o uso de video-games para ilustrar algum evento da história do mundo antigo? João Gilberto Solano
ResponderExcluirOlá João. Eu creio que sim, é possível utilizar os games como ferramenta de ensino, mas infelizmente não tenho referências nesse campo. Cheguei a trabalhar alguma coisa muitos anos atrás com Age of Empires, mas não passou de algo empírico e não dei continuidade. Abraços.
ExcluirCaso ele possa usar video-games, quais os cuidados necessário com o uso desse tipo de ferramente para promover o ensino de História antiga? - João Gilberto Solano
ResponderExcluirO papel da arte no ensino de história é algo notório e muito produtivo, pois desperta no aluno uma dimensão que transpõe a teoria, implicando sentimentos e gostos estéticos, além da memória e identidade. Como trabalhar questões como bulling, identidade, gênero e sexualidade usando quadrinhos e filmes, sem incorrer em pura recreação, por parte dos alunos? Como fazê-los compreender que a história pode ser debatida e escrita a partir de fontes tidas como ficcionais?
ResponderExcluirAllan Themístocles Galdino Ferreira
Olá Allan. Sua pergunta é bem ampla... você se propõe a trabalhar essas questões importantes em algum contexto histórico específico, ou pelo contrário, será o quadrinho a fonte para suas questões? Creio que seja a segunda opção, então certamente há muita coisa. Para citar apenas alguns que eu conheço e gosto particularmente: The Book of Boy Trouble (se você lê inglês), de Robert Kirby e David Kelly sobre as aventuras e desventuras de um jovem gay em Nova York; Aya de Yopougon (Marguerite Abouey e Clément Oubrerie), sobre jovens mulheres na Costa do Marfim (infelizmente, da coleção só saiu em português o primeiro volume, mas você encontra o original francês na internet e há um filme também); Adolf, de Osamu Tezuka, cinco volumes de um clássico absoluto dos quadrinhos, que trata das questões de respeito e identidade na primeira metade do século XX (dois garotos, um alemão outro judeu, no Japão). Vou parar por aqui pra te dar espaço pra responder e continuarmos o papo. Grande abraço.
ExcluirEste comentário foi removido pelo autor.
ResponderExcluirO uso de quadrinhos e filmes pode ser muito proveitoso na hora de ensinar história de uma maneira dinâmica. Até mesmo jogos como Assassins Creed podem servir de grande suporte para falar de determinado lugare época.
ResponderExcluirInicialmente, parabéns pelo seu trabalho, criativo, rico em informações e muito bem desenvolvido. Me chamou a atenção a forma como lida simultaneamente com diferentes temporalidades,a do acontecimento, a da época em que a "arte sequencial" foi produzida, a nossa. Creio que no centro da questão está nossa eterna capacidade de construir e reconstruir a história a partir da nossa realidade presente. Esse aspecto assegura não só aos quadrinhos, cinemas, games, etc mas também a todas as mídias que porventura possam surgir a possibilidade de um papel na construção e no ensino da história, concorda?
ResponderExcluirGisele Oliveira Ayres Barbosa