O “CAMPO INTELECTUAL” E AS EXPERIÊNCIAS
PROFISSIONAIS DE HISTORIADORAS BRASILEIRAS
Carmem Silvia da Fonseca Kummer Liblik
As reflexões tratadas neste artigo são decorrentes da minha pesquisa de doutorado que tem como objetivo investigar as trajetórias profissionais e de vida da primeira e segunda geração de historiadoras universitárias brasileiras, de 1934 a 1990. Para tanto, as categorias analíticas como gênero, classe, geração e campo intelectual foram eleitas a fim de permitirem uma reflexão acerca de tais trajetórias, marcando diferenças e aproximações entre elas e os próprios homens no interior do espaço universitário e da profissionalização do historiador brasileiro.
Logo, o presente
trabalho pretende examinar as possíveis maneiras que as noções de campo
intelectual e campo científico, desenvolvidas por Pierre Bourdieu, podem ajudar
a compreender a trajetória profissional e intelectual de historiadores
brasileiras no período de 1939 a 1972. Alice Canabrava, Maria Yeda Linhares,
Eulália Maria Lobo, Olga Pantaleão, para citar as mais conhecidas, representam
a primeira geração de historiadoras que ingressaram nos cursos de História no
momento de sua criação e institucionalização nas Faculdades de Filosofia,
Ciências e Letras. As alunas em questão tiveram contato com importantes cânones
brasileiros das ciências humanas e professores europeus, especialmente
franceses, que foram contratados com o intuito de formar um campo intelectual
da História, constituído por disciplinas, currículos e cátedras.
Pensamos que o estudo
do percurso profissional destas historiadoras universitárias está atrelado,
assim, à análise das condições do trabalho intelectual do historiador que
configuram um campo acadêmico. Tomando como ponto de partida a produção do
conhecimento histórico no campo universitário, abre-se uma via de comunicação
com as expectativas e dificuldades operacionais das estudiosas quanto às
práticas desenvolvidas por elas para a institucionalização da pesquisa
histórica. Ao apreender o conteúdo das práticas intelectuais destas
historiadoras (não omitindo, naturalmente, também a presença dos homens), seus
projetos institucionais, disciplinares, políticos, profissionais e culturais, é
possível compreender o sistema de ideias e valores que sustentou o padrão, a difusão
e a consolidação do conhecimento histórico no Brasil.
Tanto as práticas
acadêmicas realizadas pelos intelectuais quanto suas escolhas por determinados
temas de pesquisa não podem ser consideradas “puras” e “desinteressadas”. As
maneiras de agir, falar, “fazer ciência” e, especialmente, as escolhas
referentes ao assunto que será pesquisado, são orientadas para a aquisição de
dois atributos não só estimados, mas também legitimados pelos agentes deste
campo: o monopólio da autoridade e da competência científica. De acordo com
Bourdieu, ambos aspectos estão associados ao reconhecimento da capacidade
técnica e intelectual, poder social, ações e legitimidade de definir uma
cultura científica no interior das instituições acadêmicas. Aliado a isso, o
próprio gerenciamento das práticas de ensino e pesquisa, ou seja, do consenso
dos problemas, métodos e soluções percebidas como científicos, encontra seu
fundamento no conjunto dos mecanismos institucionais que asseguram a seleção
social dos pesquisadores. No caso das historiadoras brasileiras perceberemos
estas questões em função, por exemplo, da inserção delas em espaços científicos
como congressos, revistas e conselhos editoriais; da obtenção de bolsas de
estudos em outros países; do acesso à docência em universidades e das práticas
de pesquisa e metodologias empregadas. No entanto, uma análise que isolasse apenas a dimensão
“política” dos conflitos pelo monopólio do campo científico seria tão falsa
quanto mirar apenas as determinações e os interesses puramente intelectuais dos
seus agentes (BOURDIEU, 1983, p. 123). Ambos aspectos são importantes e
interdependentes, uma vez que, como afirma Bourdieu, “(...) os conflitos
epistemológicos são, invariavelmente, conflitos políticos (BOURDIEU, 1983, p.
124). É natural que um cientista procure realizar pesquisas que considere
relevantes, embora a satisfação e o interesse não constituem suas únicas
motivações. Ou seja, a pesquisa deverá gerar a possibilidade de fazer aparecer
aquele que a produz como um intelectual importante e interessante aos olhos dos
outros. Assim, a tendência das pesquisadoras a se concentrar nos problemas
considerados mais relevantes de sua época se explica pelo fato de que uma
contribuição ou descoberta implicam no acréscimo de um capital simbólico
importante em suas trajetórias intelectuais.
Uma especificidade do
campo científico é o fato de que o pesquisador necessita ocupar legitimamente a
posição de autoridade e assegurar talentos científicos, os quais Bourdieu
denominou também como “acumulação de capital científico”. E o que isso
significa no interior de trajetórias profissionais e acadêmicas das
profissionais de História? Trata-se de inferir que a posse de capital
científico tende a favorecer uma carreira que, na visão deste sociólogo, seria
qualificada como “bem-sucedida” (BOURDIEU, 1983, p. 124). Isso pode ser
percebido conforme as variadas maneiras que distinguem um historiador do outro
a partir de algumas informações, como por exemplo: realizar uma pós-graduação
em país estrangeiro, ser membro de uma instituição científica, administrativa
ou política, ter domínio de línguas estrangeiras, realizar pesquisas com bolsas
de estudo, obter as melhores notas em provas e concursos, apresentar amplo
número de comunicações em congressos e, finalmente, publicar um conjunto
respeitável de artigos e livros. Isso para citar as maneiras distintas mais
comuns que influenciam o posicionamento dos historiadores na hierarquia
acadêmica.
Esse processo é
contínuo e muitas vezes ininterrupto, principalmente quando se trata do acesso
aos cargos docentes nas universidades. Nela, o pesquisador dependerá também de
sua reputação e liderança junto aos colegas para obter fundos para pesquisas e
atrair estudantes e pesquisadores interessados. O reconhecimento, marcado e garantido
por todo um conjunto de sinais de consagração que os pares-concorrentes
concedem a cada um de seus membros, é função do “valor distintivo” de suas
pesquisas e da originalidade que se reconhece coletivamente à contribuição que
ele traz às pesquisas já acumuladas (BOURDIEU, 1983, p. 131). Aliado a isso, a
visibilidade exprime bem o valor diferencial e distintivo dessa espécie
particular de capital social: acumular capital é fazer um “nome”, um nome
próprio, um nome conhecido e reconhecido, marca que distingue imediatamente seu
portador (BOURDIEU, 1983, p. 132). Em relação às historiadoras brasileiras, é
nesse sentido que pretendemos verificar a incorporação, por parte delas, de
mecanismos aliados à conquista da legitimidade de apresentar suas comunicações
e pesquisas, promover suas respectivas visibilidades públicas e se posicionar
perante uma comunidade científica marcada pela tradição masculina.
Neste ponto, não
podemos deixar de lado as contribuições da historiadora Helenice Rodrigues da
Silva que, em “Fragmentos da História Intelectual”, lança mão da ideia de que
não é possível separar a trajetória dos intelectuais do mundo histórico e das
circunstâncias sob as quais viveram e atuaram. Ou seja, ao destacar a
importância da produção e da recepção dos textos, bem como das intervenções
públicas dos intelectuais franceses, a autora assinala toda a sua preocupação
em distinguir a história intelectual de uma história de sistemas formais de
pensamento, uma vez que esta encontra-se, frequentemente, dissociada da vida
social e sem conexões com a realidade. Aliado a isso, a história intelectual se
situa, como afirma Helenice Rodrigues da Silva, “na fronteira de diversos
domínios do conhecimento” (SILVA, 1995, p. 46). Nesse sentido, ela pretende
alcançar dois polos distintos de análise, mas que devem ser articulados e
pensados associadamente. Em primeiro lugar, observamos a própria influência de
Bourdieu nesta análise, ao elencar o conjunto de funcionamento de uma sociedade
intelectual, suas práticas, seu modo de ser, suas regras de legitimação, suas
modalidades de exclusão e de inclusão. Em segundo, as características de um
momento histórico que impõe esquemas de percepção, sistemas de valores e
modalidades específicas de pensar e de e de agir, por parte dos intelectuais.
Ao adquirir todo o
capital simbólico necessário para ter uma carreira bem-sucedida, o pesquisador
terá o poder de definir, junto a seus pares, a cultura legítima inerente ao
espaço universitário. Ou seja, a partir de um consenso mínimo em torno de
regras, métodos e teorias, os interlocutores que possuem a delegação para gerir
e produzir práticas acadêmicas, podem instituir modelos que serão consagrados e
legitimados pela comunidade científica (BORUDIEU, 1983, p. 133). É a partir
dessas relações que as cadeiras, disciplinas, currículos e linhas de pesquisa
surgem, prevalecem ou se desqualificam; e as obras são publicadas ou impedidas,
valorizadas, divulgadas ou levadas ao ostracismo. Os procedimentos acadêmicos
vinculados aos cursos de História, bem como a vida acadêmica das historiadoras
como um todo, não poderiam ser completamente compreendidos sem se levar em
conta esses fatores, os quais estão intimamente relacionados aos professores
que detinham a autoridade máxima para delegar a cultura legítima – as linhas
historiográficas, por exemplo – que deveria prevalecer nos cursos de
História. A
especificidade do discurso de autoridade reside no fato de que não basta que
ele seja compreendido (em alguns casos, ele pode inclusive não ser
compreendido), é preciso que ele seja, antes de tudo, reconhecido. Tal
reconhecimento relaciona-se a determinadas condições que são as mesmas que
definem a cultura legítima do campo intelectual: ela deve ser pronunciada
“(...) pela pessoa autorizada a fazê-lo, o detentor do cetro, conhecido e
reconhecido por sua habilidade e também apto a produzir esta classe particular
de discursos, seja sacerdote, professor, poeta etc.” (BOURDIEU, 2008, p. 91).
Quanto aos historiadores catedráticos, por serem os únicos detentores autorizados
e reconhecidos dos modos do saber e das maneiras de se fazer a ciência
histórica, as estudantes e futuras historiadoras mantiveram uma vontade
especial de provar aos mestres que possuíam atributos específicos do ofício do
historiador, como por exemplo: habilidades para a escrita racional e objetiva,
análise correta das fontes e vocação para o culto à pesquisa erudita.
Percebemos também que o papel de um professor significativo é capaz de fazer
florescer o interesse por uma área de atuação específica, servindo muitas vezes
de “modelos” para as futuras pesquisadoras. Mas, ao mesmo tempo, quando
analisamos o regime de cátedras presente nos cursos de História, podemos
perceber que o status de “notório saber” dado a um catedrático vitalício
limitava qualquer possibilidade de questionamento daquela autoridade já
pretensamente acumulada (GAMA, 2010, p. 31).
Ao fim destas
análises, concluímos que o conceito de campo intelectual nos permite analisar a
posição dos intelectuais na estrutura hierárquica do espaço universitário, bem
como a concorrência interna entre os diversos grupos em torno da legitimidade
cultural. Deste modo, a proposta de investigação ligada às situações pelas
quais passaram as referidas historiadoras para conseguir se impor, divulgar
seus trabalhos, valorizar-se, consolidar e legitimar suas carreiras mediante um
local de trabalho marcadamente masculino, terá como problematização o
reconhecimento da existência de disputas simbólicas pela obtenção de projeção,
liderança, prestígio e cargos, especialmente no interior do sistema de Cátedra
(SPIRADELLI, 2008, p. 13).
Pretendemos pensar o
espaço universitário que abrange o curso de História como uma área de
diferentes disputas e de conflitos políticos e de gênero, nada harmonioso,
equilibrado ou simétrico em termos de trajetória intelectual realizada tanto
por homens quanto por mulheres. Nossa posição se sustenta na atenção dada aos
processos de conflito e de colaboração, os quais corresponderiam às margens de
manobras ou de negociações realizadas por parte das mulheres – por que não,
subversão também – para as situações que se enredavam no espaço acadêmico em
questão. Alguns desses conflitos podiam ser resolvidos por meio de
transferências para outros cursos e universidades, ou até mesmo pela criação e
desdobramentos de novas Cadeiras, disciplinas, cursos ou linhas de pesquisa.
Referências
BOURDIEU, Pierre. A economia das trocas linguísticas. São
Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2008.
BOURDIEU, Pierre. O
Campo Científico. In: Ortiz, Renato (org.). Coleção Grandes Cientistas Sociais, n 39, Editora Ática, São Paulo,
1983.
GAMA, Pereira,
Ludmila.
O historiador e o agente da história: os
embates políticos travados no curso de história da Faculdade Nacional de
Filosofia da Universidade do Brasil (1959-1969). Dissertação (Mestrado) – Universidade
Federal Fluminense, Instituto de Ciências Humanas e Filosofia, Departamento de
História, 2010.
SILVA, Helenice
Rodrigues. Crise ideológica e produção intelectual: esquemas de pensamento
próprio a uma situação histórica. Cad.
de hist., Belo Horizonte, v. 1, n. 1, p. 45-49, out. 1995.
SILVA, Helenice
Rodrigues da. Fragmentos da história
intelectual – entre questionamentos e perspectivas. Campinas, Papirus,
2002.
SPIRADELLI, Claudinei
Carlos. Trajetórias intelectuais:
professoras do Curso de Ciências Sociais da FFCL - USP (1934-1969). Tese
(Doutorado) – Universidade de São Paulo, Faculdade de Filosofia, Letras e
Ciências Humanas, Departamento de Sociologia, 2008.
Carmem, muito bom o seu texto, parabéns!
ResponderExcluirVocê acha que a academia é um espaço de lutas, em relação ao mercado de trabalho, no qual o feminismo deve atuar também? Existem muitas mulheres professoras, já atuando, formando alunos, mas ainda continuamos uma sociedade muito machista. O que você acha?
obrigada,
Marta Medeiros
Olá Marta, obrigada pelo comentário.
ExcluirOlá Marta,
Já existem muitas pesquisas feministas tratando a presença e a atuação das mulheres em âmbito universitário. Na área das Ciências Humanas, enquanto as pesquisas internacionais focam mais as dificuldades enfrentadas pelas professoras e pesquisadoras universitárias, no sentido de superar as limitações colocadas por homens, as pesquisas nacionais observam mais as relações de gênero entre professores e professoras e, sobretudo, como estas conciliaram a vida profissional com a vida familiar e pessoal. De qualquer forma, estudos feministas que visam analisar a inserção das mulheres nas áreas das Ciências Exatas e da Saúde, mostram maiores dificuldades destas de se tornarem professoras universitárias, pesquisadoras de grande visibilidade e atuantes em cargos de direção e chefia. Logo, como aponta Bourdieu ao dizer que o espaço universitário não é neutro, podemos pensar que em termos de gênero ele também não o é, fazendo-se necessário politizar este tema no âmbito feminista. Espero que tenha respondido sua pergunta e qualquer dúvida, escreva novamente.
Boa tarde Carmem,
ResponderExcluirA senhora comentou que são escolhidos temas de acordo com sua relevância para o período histórico. Nesse sentido quais os temas que mais aparecem e há algum tema que foi estudado em todo o período histórico que você delimitou?
Evelyn Rodrigues de Souza
Boa tarde Evelyn, em relação à primeira geração (1935-1973) de historiadoras brasileiras, predominaram pesquisas relacionadas à História Demográfica e Econômica.
ResponderExcluirOlá Carmem Liblik! Acho esse tema interessante e não conheço muitos trabalhos sobre a temática, e atualmente percebemos várias questões sobre a invisibilidade feminina nos livros didáticos e na atuação das professoras por exemplo, talvez esse seja um problema, pois penso que pouco nos debruçamos sobre pensar os conflitos que permearam a formação das historiadoras, que talvez seja a "raiz" de muitos problemas que enfrentamos nas universidades, nas escolas, na historiografia e materiais didáticos das ciências humanas, em destaque para a História, ou estou enganada? Se puder, gostaria que comentasse algumas referências sobre o assunto.
ResponderExcluirCleidiane Gonçalves França
Carmem, b noite.
ResponderExcluirGostei de seu texto, que me fez pensar no projeto que realizo de pesquisar a história do curso de História da Universidade Federal do Paraná (UFPR). Gosto da maneira como vc maneja as categorias e gosto ainda de suas citações e da escolha de bibliografia básica. Vc conhece, Carmem, a professora Cecília Maria Westphalen, ex-professora da UFPR? Catedrática em 1957, dentro de um curso com muitas mulheres, e liderança política e intelectual suprema dentro do curso, com o distintivo de todas essas moedas do mercado simbólico acadêmico a que se refere Bourdieu. Teria muito interesse em saber de vc sua análise dessa professora, alguém que a meu ver provavelmente não destoaria das professoras pesquisadas por você segundo Bourdieu, e que agregaria, provavelmente, outros dados a sua análise. Vc conhece o trabalho dessa mulher na história do curso de História da UFPR? Obrigado. Bruno Flávio Lontra Fagundes
Boa tarde Bruno,
ExcluirAgradeço seu comentário. Você tem razão, a trajetória acadêmica e profissional da professora Maria Cecília Westphalen indica que ela possuiu todos os atributos políticos e simbólicos inerentes ao intelectual que se distingue no meio universitário. Assim como Alice Canabrava e Maria Yedda Linhares, a professora Maria Cecília foi uma das pioneiras que consolidou a profissionalização do historiadxr brasileirx por meio da institucionalização de pesquisas e amplas atividades na ANPUH. Sou da UFPR e cheguei a entrevistar ex-alunos dela e uma ex-colega de trabalho, a prof. Oksana Boruszenko, que me passou muitas informações sobre a Maria Cecília. Pena que não encontrei entrevistas fornecidas por ela, o que limita em parte minha pesquisa. Obrigada, Carmem.