Carlos Correa

O ORIENTALISMO DE GILBERTO FREYRE E O ENSINO DE HISTÓRIA NO BRASIL: RELACIONANDO RELATOS DE DOCÊNCIA E PESQUISA SOBRE A CHINA

Carlos Alberto Bento Corrêa



No momento, venho estudando um texto clássico chinês chamado Zhuangzi (Chuang-Tsé), cuja pronúncia pode ser 'tchuân tsú', ou quase isso. Caso o leitor não tenha ouvido falar deste nome, ele é o sábio da música "O Conto do Sábio Chinês", do músico Raul Seixas. Na música, Raul conta que o sábio sonhou que era uma borboleta, e quando acordou não sabia mais se era um sábio mesmo ou se era uma borboleta. Esse conto, por sua vez, pode ser encontrado em qualquer uma das traduções do livro de Zhuangzi. O conto inteiro, aliás, pois Raul só contou uma parte. É o que faço também, não vou contar o resto, conservando assim a curiosidade do leitor. De resto, vou propor a questão de como apresentá-lo ao público brasileiro. Em especial, nas aulas de história da China, quando são possíveis.

Zhuangzi é de 2.300 anos atrás, e escreveu na China que está do outro lado de um planeta tido como redondo, sendo assim de difícil abordagem em moldes historiográficos que dão prioridade a dicotomias ou categorias muito fechadas. Ora, é claro que dicotomias e categorias fechadas tem valor analítico, porém, para se ensinar a história da China no Brasil, penso que seria preciso retrabalhar alguns aspectos da noção que temos da própria história do Brasil. E posso citar algumas memórias com as quais possamos dialogar para tentar exemplificar essa necessidade de retrabalho. Na primeira dessas memórias, a professora Helayne Cândido (2015, p. 105) destacou que para as aulas que ministrou

Foi elaborado um plano de aulas em que traríamos temas diversos sobre China e Cultura Chinesa para os alunos, tentando distanciar-nos de uma cronologia histórica já estabelecida que define, a priori, o que se deve olhar sobre essa civilização. Como uma das sociedades mais antigas do planeta, cuja continuidade histórica não encontra paralelo no Ocidente, analisar a China exige outras abordagens.

O primeiro ponto a ser retrabalhado é o que Helayne apontou: "distanciar-nos de uma cronologia histórica já estabelecida que define, a priori, o que se deve olhar sobre essa civilização". Ora, como professor de História no ensino fundamental tive uma impressão parecida, pois não somente a China é perifericamente abordada no ensino, mas também os demais "povos orientais", "povos indígenas", "povos africanos", têm sido abordados de modo minimizado. O motivo dessa abordagem minimizada é comentado por Helayne (p. 109):

Nossa educação é formulada de maneira ocidental, com fortes bases europeias e modismos, que mudam de tempos em tempos. É natural não encontramos evidências no ensino sobre a história asiática, mais especificamente sobre a China, ou resumi-la ao seu aspecto econômico apenas, em páginas rápidas dos livros didáticos. Mas também não podemos ser cruéis e dizer que os livros estão fracos. Sim, eles apresentam sucintamente outros aspectos da história mundial, que se o professor não explorar, passarão desapercebidos e inexplorados.

Os "aspectos da história mundial" têm sido separados em categorias como "povos indígenas", "povos africanos" e "povos orientais" que acabam, por assim dizer, sendo abertas demais, homogêneas demais, etnocêntricas demais, e que por isso dariam apoio à continuação de velhos estereótipos. E se "o professor não explorar", e não detalhar essas categorias, suas singularidades "passarão desapercebid[a]s". De qualquer forma, se ainda precisamos dessas categorias para nos comunicarmos, penso que seja preciso ao menos retrabalhá-las. Em outras palavras, apresentar a China para os alunos do século 21 tendo base numa perspectiva de se contar as histórias do Brasil que destaquem sua relação com "o Oriente".

Uma alternativa que me parece instigante, é a de retomarmos análises de intelectuais brasileiros, e não tanto estrangeiros, que tentaram chamar a atenção para a relação que o Brasil tem com os "povos orientais", não de agora, mas já no período da colonização europeia. Porque mesmo que utilizemos perspectivas importantes, como a de Edward Said, em seu livro "Orientalismo" (1990), para trazermos à tona os "traços orientais" do Brasil, ainda seria uma abordagem estrangeira. Por isso, penso que para termos dados mais contundentes em mãos, na hora de dialogar com a historiografia eurocêntrica, poderia ser pertinente se realizássemos, também, debates entre brasileiros. No sentido de tentar mostrar que existem, na história do Brasil, intelectuais brasileiros que se dedicaram a estudar a "presença do Oriente" no Brasil. Sim, tentar valorizar os estudos brasileiros dentro do que hoje se denomina Sinologia (estudos sobre a China), e um desses intelectuais pode ter sido Gilberto Freyre.

Para apresentar melhor esta ideia, conto uma experiência que vivi no curso de Licenciatura em História. Quando estava no curso, fiz uma disciplina sobre historiografia e ensino de história do Brasil, e lá pude ter um contato inicial com a obra de Freyre. Sobretudo, Casa-Grande & Senzala, mas, se não me falha a memória, nada ou bem pouco foi dito sobre as análises que trabalharam as relações Ocidente e Oriente no contexto da história do Brasil. Embora, professores e alunos admitissem várias vezes, durante o curso, a falta que estava fazendo um semestre de "história oriental", e, no fim das contas, fui saber das análises de Freyre bem depois. De todo modo, agora que tenho contato, compartilho questionamentos a respeito, pois a abordagem de Freyre me parece especial por abranger não somente a América Latina, a Europa e a África, mas também a Ásia. Fato que poderia incentivar novas abordagens a partir de sua obra. Discuto melhor esta proposta.

Em 2003, foi publicado o livro "China Tropical" que reúne trabalhos onde Freyre se dedicou a mapear os "valores orientais" presentes na cultura brasileira. A respeito desses estudos, o organizador Edson Fonseca (p. 9-10) comentou que Freyre

não chegou ao extremo de orientalizar-se. Mas como possuía em alto grau o dom da empatia e uma cosmovisão generosa e abrangente, soube conciliar valores ocidentais e orientais. Com tais valores - aos quais se juntaram os indígenas e os africanos - formou-se esta nação culturalmente mestiça que é o Brasil (...). Espero que a antologia o coloque na linha (...) de um Edward Said e de um Simon Schama, por exemplo (...).

Tal comentário enfatiza o fato de que Freyre não teria dado maior ou menor importância para esta ou aquela cultura, apenas as analisou. Perspectiva que poderia ser relevante para o ensino, já que Helayne Cândido (2015, p. 105-106) conta que é problemático "utilizar a expressão ou a ideia de que uma cultura [seja] melhor ou pior que outra" (p. 105-106), pois tal uso gera preconceitos e atrocidades. Neste sentido, é preciso passar a palavra ao próprio Freyre, e ver com detalhes como ele abordava as culturas. Em Casa-Grande & Senzala, de 1933, dizia que, a partir do fim do século 16, o Brasil fora colonizado

na época em que os portugueses, senhores de numerosas terras na Ásia e na África, se haviam apoderado de uma rica variedade de valores orientais. Alguns inadaptáveis à Europa. Mas todos produtos de finas, opulentas e velhas civilizações asiáticas e africanas. Desses produtos, o Brasil foi talvez a parte do império lusitano que, graças às suas condições sociais e de clima, mais largamente se aproveitou: o chapéu-de-sol, o palanquim, o leque, a bengala, a colcha de seda, a telha à moda sino-japonesa, o telhado das casas caído para os lados e recurvado nas pontas em corno de lua, a porcelana da China e a louça da Índia. Plantas, especiarias, animais, quitutes. O coqueiro, a jaqueira, a mangueira, a canela, a fruta-pão, o cuscuz. Móveis da Índia e da China (2003, p. 11-12).

É válido destacar que Freyre fora criticado por suas análises. No entanto, respondeu às críticas que, segundo ele, consideravam suas análises meramente "materialista[s]", esclarecendo em seu texto "O Oriente e o Ocidente" (p. 23-24), de 1951, que

há quem tenha por exagerada a importância por nós atribuída ao Oriente na formação da cultura que aqui se desenvolveu com a sociedade patriarcal e foi, em várias de suas formas, condicionada pelo tipo absorvente de organização de economia e de política, de recreação e de arte, de religião e de assistência social, de educação e de transporte - e não apenas de família, no sentido apenas biológico da palavra - que é o patriarcal. A verdade é que o Oriente chegou a dar considerável substância (...) e cor à cultura: o Oriente concorreu para avivar as formas senhoris e servis dessa convivência entre nós: os modos hierárquicos de viver o homem em família e em sociedade. Modos de viver, de trajar e de transformar-se que não podem ter deixado de afetar os modos de pensar.

Frente a argumentação de Freyre, destaco a ampla abordagem que faz em seguida com relação aos "modos de pensar" e exaustivas notas de rodapé. Assim, a partir de Freyre, proponho a questão: seria possível que tais "valores orientais" pudessem ser também fatores a serem considerados nos interesses de leituras que intelectuais brasileiros fizeram da "literatura oriental"? Exemplifico tais interesses. Interesses como o da educadora Cecília Meireles (1996), ao tentar traduzir obras dos poetas chineses Li Po e Tu Fu, bem como a tradução do livro "A Importância de Viver", do chinês-americano Lin Yutang, feita por Mario Quintana. Ou até mesmo interesses de músicos brasileiros como Raul Seixas (1980), ao compor a música "O Conto do Sábio Chinês". Ou ainda, a poesia japonesa do haiku (hai-kai), a qual Millôr Fernandes (1996) se interessou e compôs vários haiku a seu modo. Interesses que, por sua vez, podem ter algo em comum: Zhuangzi. Vejamos mais nitidamente os indícios que apontam para esse "algo em comum".
Segundo Hamill e Seaton (2000), "ele foi estudado por todos os grandes poetas e filósofos da China, do Japão, da Coréia e do Sudeste Asiático dos últimos dois mil anos. Li Po o cita; Tu Fu nele busca consolo; Basho não saía de casa sem ele". Diante destas informações, nota-se que Li Po e Tu Fu, que foram traduzidos por Cecília, utilizavam os recursos literários de Zhuangzi, bem como os poetas japoneses do haiku, como Basho, fato estudado por Peipei Qiu (2005). Além de Quintana ter traduzido uma obra importante no desenvolvimento do pensamento de Lin Yutang, que se baseou, principalmente, em Zhuangzi, como argumenta Liu Jianmei (2016, p. 106-125).

E o que se quer dizer com estas informações? Apenas trazer mais elementos para retrabalhar a pergunta que propus: poderíamos ir além dos indícios materiais chineses ligados à chamada "cultura popular", como o pastel, lembrado por Helayne Cândido (2015, p. 107) e, assim, abrangermos também a chamada "cultura intelectual [ou letrada]", onde os indícios materiais que nos ligariam à cultura chinesa poderiam ser os livros produzidos por brasileiros? Esta é a pergunta que gostaria de compartilhar. Afinal, estudo uma possível proposta educacional do chinês Zhuangzi, e a estudo estando no Brasil. Logo, por que não utilizarmos, também, estudos acadêmicos brasileiros quando introduzimos uma análise de um clássico chinês no ensino de História?

Referências

CÂNDIDO, H. "Ensinar História da China no Sul do Paraná: a experiência de um novo mundo que se descobre". In: BUENO, A; ESTACHESKI, D; CREMA, E (org.). Pensando Amanhãs: falando sobre o Ensino de História. Rio de Janeiro/União da Vitória: Edição Especial Sobre Ontens, 2015. Disponível em:
Acesso em janeiro de 2016.
FERNANDES, M. Hai-Kais. Porto Alegre: L&PM, 1997.
FONSECA, E. da F. Gilberto Freyre: China Tropical. Brasília: Editora Universidade de Brasília: São Paulo: Imprensa Oficial do Estado, 2003.
HAMILL, S; SEATON, J. P. Chuang Tzu: Ensinamentos Essenciais. Trad. Eduardo Pereira e Ferreira. São Paulo: Cultrix, 2000.
JIANMEI, L. "Lin Yutang: Zhuangzi Travels to the West". In: Zhuangzi and Modern Chinese Literature. New York: Oxford University Press, 2016. Disponível em:
LI PO; TU FU. Poemas chineses. Trad. Cecília Meireles. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1996.
QIU, P. Basho and the Dao: The Zhuangzi and the Transformation of Haikai. Honolulu: University of Hawai'i Press, 2005. Disponível em:
SAID, E. Orientalismo. Trad. Tomás Rosa Bueno. São Paulo: Companhia das letras, 1990.
SEIXAS, R. "O Conto do Sábio Chinês", Abre-te Sésamo. CBS/Sony Music, 1980.
YUTANG, L. A Importância de Viver. Trad. Mario Quintana. São Paulo: Globo. Ed. 11, 1997.


9 comentários:

  1. Caro Carlos;
    ótima lembrança o livro de Freyre. Pergunto: pode-se ensinar uma história do Brasil orientalizada, a partir de sua obra?
    saudações,
    André Bueno

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    1. Olá, caro prof. Bueno.

      No momento, penso que a obra de Freyre daria pelo menos bons debates em sala de aula, visto que os textos dele apresentam pontos fortes e pontos fracos.

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    2. Olá, caro prof. Bueno.

      No momento, penso que a obra de Freyre daria pelo menos bons debates em sala de aula, visto que os textos dele apresentam pontos fortes e pontos fracos.
      Carlos Corrêa. [correção: adicionada a assinatura que estava ausente].

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  2. Bom dia Carlos Alberto,
    Gostaria de saber se ao estudar Gilberto Freyre com seus alunos você explicará o mito da democracia racial, pois ao explicar a inserção de diversas culturas dá a entender a miscigenação do povo brasileiro e o equívoco da igualdade racial e cultural.
    Evelyn Rodrigues de Souza

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  3. Olá, professora Evelyn.

    sim, certamente explicarei.
    Carlos Corrêa.

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  4. Olá, professor Carlos.
    De que forma poderíamos intervir diretamente no processo de formação da visão sobre o Oriente dos alunos, tendo como contraponto o conteúdo por vezes simplista apresentado nos livros didáticos, ou da conceituação apresentada nos meios midiáticos muitas vezes pautada numa concepção do Oriente como algo distante geográfica e culturalmente de nossa realidade?
    LEANDRO SOUSA DE OLIVEIRA

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    1. Olá, caro Leandro.

      no momento, penso que dando voz ao 'Oriente', e não falando por 'ele', como já levantado por Edward Said.
      Assim, os alunos teriam a chance de perceber, por exemplo, que se querem, ainda, usar a velha expressão 'o Oriente', esta deve ter, pelo menos, dois 's', onde a pronúncia se torna 'os Orientes'.
      Carlos Corrêa.

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  5. Olá professor Carlos, boa noite.
    Achei o texto muito interessante, gostaria de saber se as religiões e filosofias chinesas (não somente, mas as religiões e filosofias orientais diversas) entram na pauta da discussão proposta, e se é possível abordá-las no contexto brasileiro atual.
    Abraços.
    Camila Onofre

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    1. Olá, prezada Camila,

      Tenho achado que elas podem entrar na pauta da discussão do texto, ou no contexto atual brasileiro. Porém, o que seria preciso levar em conta é que as produções brasileiras não são reproduções das religiões ou filosofias orientais.

      Pelo contrário, as produções brasileiras (músicas, livros, ou outras fontes), antes de tudo, poderiam se tornar bons pontos de partida para abordarmos os mundos asiáticos (suas presenças ou ausências na cultura brasileira), quando ensinamos história do Brasil.
      Carlos Corrêa.

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